O QUE MAIS DÓI NA VIDA

O que mais dói na vida não é ver-se
mal pago um benefício,
Nem ouvir dura voz dos que nos devem
Agradecidos votos,
Nem ter as mãos mordidas pelo ingrato,
que as devera beijar!

Não! o que mais dói não é do mundo
a sangrenta calúnia,
nem ver como s'inflama a ação mais nore,
os motivos mais justos,
nem como se deslustra o melhor feito,
a mais alta façanha!

Não! o que mais dói não é sentir-se
as mãos dum ente amado
nos espasmos da morte resfriadas,
e os olhos que se turvam,
e os membros que entorpecem pouco e pouco,
e o rosto que descora!

Não! não é ouvir daqueles lábios,
doces, tristes, compassivas,
sobre o funéreo leito soluçadas
as palavras amigas,
que tanto custa ouvir, que lembram tanto,
que não s'esquecem nunca!

Não! não são as queixas amargadas
no triunfar da morte;
que, se se apaga a luz da vida escassa,
mais viva a luz rutila;
luz da fé que não morre, luz que espanca
as trevas do sepulcro.

O que dói, mas de dor que não tem cura,
o que aflige, o que mata,
mas de aflição cruel, de morte amara,
é morrermos em vida
no peito da mulher que idolatramos,
no coração do amigo!

Amizade e amor! - laço de flores,
que prende um breve instante
o ligeiro batel à curva margem
de terra hospitaleira;
com tanto amor se enastra, e tão depressa,
e tão fácil se rompe!

À mais ligeira ondulação dos mares,
ao mais ligeiro sopro
da viração - destrançam-se as grinaldas;
o baixel se afasta,
veleja, foge, até que em plaga estranha
Naufragado soçobre!

Talvez permite Deus que tão depressa
estes laços se rompam,
por que nos pese o mundo, e os seus enganos
mais sem custo deixemos:
Sem custo assim a brisa arrasta a planta,
Que jaz solta na terra!

(Gonçalves Dias)

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