COMO ENCARAR A MORTE
De
longe
Quatro
bem-te-vis levam nos bicos
o batel de ouro e lápis-lazúli,
e pousando-o sobre uma acácia
cantam o canto costumeiro.
O
barco lá fica banhado
de brisa aveludada, açúcar,
e os bem-te-vis, já esquecidos
de perpassar, dormem no espaço.
A
meia distância
Claridade
infusa na sombra,
treva implícita na claridade?
Quem ousa dizer o que viu,
se não viu a não ser em sonho?
Mas
insones tornamos a vê-lo
e um vago arrepio vara
a mais íntima pele do homem.
A superfície jaz tranqüila.
De
lado
Sente-se
já, não a figura,
passos na areia, pés incertos,
avançado e deixando ver
um certo código de sandálias.
Salvo
rosto ou contorno explícito,
como saber que nos procura
o viajante sem identidade?
Algum ponto em nós se recusa.
De
dentro
Agora
não se esconde mais.
Apresenta-se, corpo inteiro,
se merece nome de corpo
o gás de um estado indefinível.
Seu
interior mostra-se aberto.
Promete riquezas, prêmios,
mas eis que falta curiosidade,
e todo ferrão de desejo.
Sem
vista
Singular,
sentir não sentindo
ou sentimento inexpresso
de si mesmo, em vaso coberto
de resina e lótus e sons.
Nem
viajar nem estar quedo
em lugar algum do mundo, só
o não saber que afinal se sabe
e, mais sabido, mais se ignora.
(Carlos Drummond de Andrade)
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